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Saga da alma e sua práxis no mundo

O campo mítico e os personagens da vida real

Primeiro episódio

Os mitos nos acompanham todos os dias ao longo da jornada de nossa existência. Eles estão presentes em nossas vidas formatando a nossa maneira de atuar no mundo, sem que tenhamos a menor consciência disso. No dia a dia, fazemos downloads frequentes de um campo mitológico para vivenciar um ou outro papel, dentre os muitos que temos a desempenhar. É quase como se estivéssemos baixando um novo aplicativo do Google ou uma nova versão do iCloud, com a diferença de que, nesses casos, fazer o download é um ato deliberado. Temos noção do quanto custa e do por que necessitamos de uma atualização daquele determinado programa.

O campo mítico, no qual estamos imersos, no entanto, é povoado de informações e símbolos que acessamos, a toda hora, sem nenhuma ideia do que representam ou por que eles simplesmente surgem. Um dos maiores estudiosos dos mitos, Joseph Campell, sustenta que os símbolos das mitologias não são fabricados; não podem ser ordenados, inventados ou permanentemente suprimidos. São produções espontâneas da psique e cada um deles traz em si, intacto, o poder criador de sua fonte.

Freud, por exemplo, demonstrou que os mitos e suas crenças estão vivos na era moderna, utilizando metáforas de personagens das lendas mitológicas para fundamentar sua teoria, a começar pelo ilustre Édipo. Enquanto o fez ao nível individual, Jung partiu para o coletivo, criando os arquétipos que explicam porque no Brasil ou no Japão ou na África do Sul os homens compartilham das mesmas simbologias e têm ídolos, deuses e desafios cósmicos muito semelhantes--, diferenciados apenas por suas culturas.

Comprometido em explorar o seu inconsciente – “minha vida é a história de um inconsciente que se realizou”-, conforme abre sua autobiografia, Jung acreditava que o homem só poderia ser expresso como um mito, já que a ciência não poderia, por si só, dar conta dessa riqueza múltipla e subjetiva -- essencialmente Jung identifica na alma a fonte mais primitiva, aquele que contém a energia criadora que dá origem aos arquétipos e aos mitos.

Mitólogos de diferentes áreas dedicaram-se exaustivamente ao estudo das estruturas dos mitos, encontrando equivalência, por exemplo, na sua ordem de narrativa. E os que se detiveram nos mitos dos heróis como Campbell, entre outros, afirmam que os enredos são praticamente os mesmos, independente da localização geográfica e etnia. O antropólogo Claude Lévi-Strauss explica que o objetivo do mito é o de mediar oposições entre seus elementos, buscando a resolução básica de tensões e contradições da vida humana ou de uma cultura.

Então, se olharmos para as organizações que são um reflexo da sociedade, que tipo de mitos/personagens são mais fáceis de serem reconhecidos?

Você já se pegou matando algum leão, seguindo o canto de um pássaro numa floresta escura ou adivinhando charadas de um mago que cruzou seu caminho?

Já encarnou um herói ou uma heroína?

Já foi obrigado a reverenciar um rei ou uma rainha?

Como é que isso acontece na sua realidade?

O nosso Game of Thrones

O que observamos é que a cultura das maiorias das organizações está impregnada pela luta pelo poder e pela sobrevivência. Um olhar mais atento às suas dinâmicas irá mostrar uma grande variedade de mitos arquetípicos se digladiando em vestes formais do ambiente corporativo, num panorama ficcional que lembram as séries do estilo Game of Thrones. Ali, o poder é litigado momento a momento por patriarcas ou matriarcas entrincheirados em seus postos de comando, enquanto heróis e heroínas disputam a caça para agradá-los – papeis dicotômicos que não deixam espaço para outras formas de atuação.

Mais um close, e vamos descobrir que existem patriarcas subvertendo as regras, e invadindo o espaço dos heróis porque simplesmente não aguentam mais o confinamento de suas posições, ou alguns heróis revestidos com a aura de autoridade máxima, completamente desfocados. Submetidos a matar um leão por dia, esses personagens passam a sabotar as organizações, pois nenhum deles se vê mais nesse lugar; acabam criando conflitos aparentemente insolúveis e aguçando ainda mais a inflexibilidade corporativa.

Nessas alturas você deve estar se perguntando o que a alma tem a ver com isso.

Uma das hipóteses para esse clima é que, em termos de neurociência ou do potencial do córtex de se adaptar a ambientes ou limitações, somos capazes de acompanhar os avanços tecnológicos. Mas o nosso cérebro límbico é instintivo, o que significa que a nossa alma e nossas emoções precisam de um tempo mais longo para processar mudanças. Isso quer dizer que a razão faz upgrades na velocidade da luz, enquanto a alma e o emocional estão sincronizados com esse universo mitológico que requer outro tipo de conexão e timing.

Com isso, vivemos um paradoxo, às vezes, dilacerante: temos que avançar tão rápido quanto a tecnologia, mas não deslanchamos quando se trata de abandonar os mitos que a nossa alma carrega; na realidade, essa contradição costuma nos paralisar. Para empreender transformações verdadeiras é necessário que a nossa alma se desapegue desses modelos padronizados.

Daí porque, quanto mais rígida for a estrutura de uma organização, mais os seus ‘rebeldes’ atuarão de forma a preservar a própria liberdade de ação. Quanto mais são desafiados, mais eles irão desestabilizar a hierarquia e o status quo. São talentos que estarão pelos becos, nas sombras, preferindo o papel de infratores que quebram regras para escapar dessas repetidas cenas de bravura e poder aos quais são forçados cotidianamente.

O fato é que a grande maioria das empresas perde talentos sem ter ideia de que contribuiu firmemente para criar esse clima de Game of Thrones, e o que é pior, desconhece o que poderia fazer para reverter esse panorama.

O que nos faz questionar:

O deu origem a esse tipo de jogo disputado a ferro e fogo?

E para onde estarão indo esses talentos que não mais desejam se aventurar numa perspectiva de luta de vida ou morte ?

E a alma, como fica nesse em meio a esse cenário?

Aguarde o próximo episódio.


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