Se cada dia cai, dentro de cada noite, há um poço onde a claridade esta presa.
Há que sentar-se na beira do poço da sombra e pescar luz caída com paciência
(Pablo Neruda)
Adentrar a sombra não é caminhar para o escuro, mas caminhar em direção à luz. Você pode piscar os olhos e achar que não leu essa frase direito, mas é isso mesmo. Diferentemente do masculino e do feminino que se complementam, mas guardam suas diferenças, sombra e luz evidenciam um ao outro, exatamente porque um parece ocultar o outro ou quando um existe, o outro não pode existir, ao menos no mesmo espaço.
Mas como reconhecer a presença da Sombra?
Disposto a reconhecer a sua própria saga?
É bem provável que, se você acha que a sua vida está sem sentido - sem desafios, mais pras cores opacas do que para aquelas vibrantes, que as coisas estão realmente sem muita graça -, você já esteja na zona da Sombra. Mas não se assuste. É nela que você irá encontrar tesouros desconhecidos, recursos que você nunca imaginou possuir e que podem ser fundamentais para uma transformação que você também ignora, mas que dá sinais de estar a caminho, em seu dia a dia. Vamos desvendar juntos o que acontece e como você aproveitar um manancial de oportunidades. Fique por aqui até o final que você vai se surpreender.
O assunto “sombra” intriga a humanidade desde os seus primórdios. Em “Além do Herói” Allan Chinen explora o percurso em direção à Sombra, demonstrando que chegar lá, nesse local, que o homem tanto teme, pode representar a chance de encontrar impulsos criadores, pistas para a totalidade, caminho que é revelado em diferentes momentos de maturidade e sabedoria - e que ocorrem principalmente quando não temos receio de assumir e integrar aspectos negativos e emoções reprimidas anteriormente.
Na nossa “Saga do Homem em busca do masculino profundo” já passamos pelo portal da Anima, integrando o lado feminino à nossa maneira. Veja artigo sobre o tema no link a seguir: https://www.jorgedornellesdeoliveira.com/single-post/2019/03/24/O-Masculino-e-a-Anima.
Agora vamos nos colocar prontos a atravessar esse segundo portal. Para alcançar o masculino profundo será preciso que a gente reconheça nossa fúria e força, mas também nossa fragilidade e dor.
Em qual portal você se encontra?
Conhecido em varias mitologias, o Xamã-Malandro é o arquétipo que vai ativar a abertura desses portais. Também é chamado de Saci Pererê, corvo dos índios pueblos, entre outros; é aquele que faz travessuras nas festas de Halloween com o Trick-or-treat, doce ou travessura!
É o Trickster mencionado por Jung, o que faz a mediação com os aspectos sombrios e destrutivos que se encontram na Sombra, mas que também traz a possibilidade de acionar e potencializar as qualidades que ficaram ausentes ao longo da trajetória do herói ou o do patriarca, como já vimos anteriormente. Para além do bem e do mal, ainda conforme Jung, está a totalidade, lugar de destino para os que ousam trilhar o caminho da individuação, aonde, somente nós homens, poderemos encontrar o masculino profundo.
“O grande problema do mal não é o pecado, mas a recusa em admitir o próprio mal”, diz Scott Peck, escritor e psicoterapeuta norte-americano no livro “Ao Encontro da Sombra” (editora Cultrix), ressaltando que aquilo que não conseguimos enfrentar de frente, nos agarrará pelas costas. Mas se ao invés disso, tivermos a coragem de “rebatizar a nossa maldade como o melhor que em nós existe”, como observa Friedrich Nietzsche, nessa mesma edição, estaremos construindo os melhores momentos de nossas vidas.
O budismo trata dessa questão com o princípio da unicidade do bem e do mal. Ambos são relativos. A entidade da vida, que às vezes cria valor positivo, e em outras, valor negativo, é essencialmente uma só. Quando a entidade interior se harmoniza com o universo, transforma o bem em ações benevolentes. Quando ela está em desarmonia, é dominada por impulsos egoísticos. Nessa visão, o mal, quando canalizado, serve para evidenciar o bem, não extinguindo ou negando a sua existência, mas direcionando-o para o bem. Buda é a Lei Mística, o “eu maior”, o universo que existe dentro de cada ser humano. É a entidade ou a verdadeira essência que incorpora tanto o bem quanto o mal.
Para o Taoísmo, a relatividade dos valores está expressa em seu símbolo chinês do yin e do yang, representando simultaneamente o lado sombrio e o lado ensolarado de uma montanha, ou seja, os pólos da natureza nunca podem ser separados. Ainda segundo eles, se escolhemos um lado e bloqueamos o outro, o equilíbrio da natureza será perturbado. O grande desafio então é buscar o processo de conter os opostos, ou como diria Jung, atuar constantemente nesse flutuante estado de tensão psíquica -- única forma de trabalhar a psique, constituída de opostos, a exemplo da luz e das trevas, feminino e masculino, bom e mau, etc.
A individuação, segundo ele - processo pelo qual nos tornamos únicos e inteiros –, tem como uma de suas etapas abraçar a luz e as trevas. “A Sombra personifica o que o indivíduo recusa conhecer ou admitir e que, no entanto, sempre se impõe a ele, direta ou indiretamente, tais como os traços inferiores do caráter ou outras tendências incompatíveis”.
O caminho parece penoso até aqui? Seria melhor desistir?
Todos nós chegamos a uma certa altura em que nos sentimos mais confortáveis, estamos instalados em nosso trabalho, na família e no mundo. Eis que de repente tudo muda e nossos “objetos” preferidos, trabalho, posses, filhos --, tudo perde a cor, inesperadamente.
Provavelmente foi a Sombra, essa desconhecida que emergiu não se sabe de onde, trazendo uma enorme parte que não foi integrada à nossa consciência, e o chamado para que entremos em contato com o que ficou escondido nesse porão ao longo do tempo. Integrar a Sombra pode soar como grande desafio. Afinal suportar a tensão entre os opostos para integrar aquilo que antes era visto como mau ou simplesmente ignorado, requer lançar-se numa jornada para o inconsciente.
Quando parece que tudo se esgotou e que não há o que fazer a respeito, olhe para a Sombra. Ela é praticamente um manancial de recursos e potenciais não explorados, no qual, ao longo de nossa trajetória, fomos fazendo depósitos. Isso significa que poderemos resgatar tesouros que nem sequer tínhamos ideia de possuir ou entrar em contato com qualidades muito importantes para a nossa transformação e individuação.
A jornada em direção à sombra, porém, exige um intermediário, a exemplo do Xamã-Malandro, já que o processo não é direto, requer tempo e se faz em etapas: o preto e o branco se unem no cinza, lembram os organizadores do livro “Ao Encontro da Sombra”.
Em compensação, é a Sombra que guarda nossos segredos mais ricos e importantes, o lugar onde talvez esteja presente a nossa maior energia criadora e criativa, que precisa ser libertada para movimentar nossos caminhos de transformação, especialmente na direção do masculino profundo, onde será possível atingir nosso real potencial.
Vamos juntos?
“Mas, o que acontecerá, se descubro, por ventura, que o menor, o mais miserável de todos, o mais pobre dos mendigos, o mais insolente dos meus caluniadores, o meu inimigo,reside dentro de mim,sou eu mesmo,e precisa da esmola da minha bondade,e que eu mesmo sou o inimigo que é necessário amar?"(JUNG,2004)